[para aretha franklin]

não
a música não
se acaba na morte
a música ecoa no
silêncio

as ondas continuam
a reverberar
na dimensão
da alma

talvez ainda seja possível
escutar uma pequena prece
se mantivermos nossos
ouvidos e gravadores
ligados

talvez alguma escritora
capte estes sons
em outra vida

a alma continua
no pesar
do silêncio

[o silêncio daquele adeus]

o silêncio daquele adeus
ainda ecoa nos ouvidos

o todo que deixou de ser dito
escorre agora em poemas
e pesadelos
– sobras de um laço desfeito
quando ainda há amor

no silêncio não coube
a dor e o medo
de ser atirado em outra vida
uma vida diferente
do que foi sonhado um dia

você não estará lá
quando meus olhos secarem,
no meu último suspiro
mas irá chorar a minha morte
ou a vida que
não vivi ao seu lado?

[eu sonho com o dia que você chegaria]

eu sonho
com o dia que você chegaria
em casa
– nossa casa –
e eu poderia fazer o jantar
só pra variar
um prato que eu procuraria
no google
com os ingredientes
sobre a pia

pensei hoje que eu faria
um risoto de beterraba
mas então a realidade
me chegou como um tapa

eu não lembro se você
gosta de beterraba

todo esse tempo
longe
eu começo a me esquecer
sobre o que você gosta

teria eu um dia
perguntado
a sua opinião sobre
beterraba?

lembro dos momentos
especiais
com vinho e espumante
música e almofadas
no chão da sala

mal posso lembrar
do beijo
que logo meu corpo estremece
de desejo e saudade
mas também
de uma profunda tristeza

no exercício de apagar
o que existiu
e no reflexo involuntário
de lembrar
a cada cheiro ou música
talvez
eu comecei a esquecer?

o que você ama
permanece em mim
como uma cicatriz
que escreve a história
no meu corpo

e continuo a viver
nesse papel de quem,
abandonado e distraído,
espera a chegada
mesmo que todos os indícios
digam que você
não vem

herança

I.

o século
XX
não inventou a morte
mas o banho
de sangue
mancha nossas vestes
até hoje

todas as tecnologias
foram usadas
para massacrar
a vida
em suas diferentes
estruturas

seria a tecnologia
maléfica
ou é o homem
que a dirige
e deseja a morte do outro?

II.

o outro
é sempre
eu

III.

entre tantos culpados
há quem se condene
como inocente
por não ter sangue
nas próprias
mãos

pulando
sobre as sombras
de verdades convenientes

o que aprendemos
com o século
XX
mas esquecemos
de aplicar
ao século
XXI?

IV.

o passado não é
irrelevante
mas também não é
determinante

esquecemos o pensar
e o desobedecer
pelo conforto de realizar
desejos
auto-consumíveis

hoje a vida se queima
e nosso lixo plástico
se eterniza

é esta a nossa herança
– a morte

antecedentes

minha condenação primordial
foi quando me entregaram
à minha mãe dizendo:
é um menino

o que foi dito naquele momento
é que eu seria um homem
vivendo dentro de uma
expectativa moral
e material

o médico me condenou ali
a várias possibilidades
limitadas pelo que é ser
homem
num mundo de homens

fadado a uma liberdade
fálica
minha natureza rebelde
me leva a
ser abjeto

não pertenço a terra dos homens
mesmo tendo nascido como um

[é preciso me distanciar]

é preciso me distanciar
de mim
para que eu possa
me suportar
sem jamais
me abandonar

é necessário que eu
me observe
à distância
e me escute
fora da minha cabeça
para compreender
quem sou
o que eu faço
comigo e com os outros
– que são reflexos
de mim

é meu dever
me abrir
como a um tarô
partindo do louco
ao mundo

me transpassar
para me conhecer

se não roubo a vida
de ninguém
quando sozinho
é para não ter
a companhia
eterna
de um assassino

por que quereria eu
a companhia
eterna
das minhas próprias lágrimas
ou da inflexibilidade do pensamento?

para viver em meu corpo
e com o meu corpo
preciso ser minha testemunha
e meu álibi

é necessário estar
distante
para que um dia
eu possa me aproximar
de mim e dos
outros

enfim
despido de opiniões
e protegido
com a minha verdade

[preciso me entregar à má poesia]

preciso me entregar
à má poesia
deixar mente e mãos
livres para pensar
sem as amarras
de toda uma tradição
e crítica
pregando o que é bom
e mau
na literatura

eu necessito ser rebelde
também
com os cânones
e com aqueles
que ainda hoje
passam noites em claro
buscando o verso
perfeito

eu quero o
poema selvagem
esconder a escultura
na pedra bruta
falar de amor
com o palavrão
e escarrar na caretice
com declarações doces
de submissão

que se danem
os clássicos
e com eles vão-se
também os modernos

quero que meu poema
seja sentido
pela menina
que sofre
a perda de seu primeiro
amor eterno

e em toda sua
simplicidade
serei hermético
a quem discute
as minúcias da linguagem

porque estão todos
olhando para o céu
diretamente
para o astro rei
e por isso
estão cegos
para o humano
que morre
embaixo de suas
asas virgens

eu procuro a solidão
de escrever o óbvio
com palavras
que ainda não foram
inventadas

[eu não sei o que fazer]

eu não sei o que fazer
com as palavras
que me vêm a mente
– todas sobre você

também fico em dúvida
onde colocar minhas mãos
quando você não está
ao meu lado
para segurá-las

eu perco o jeito
quando sinto o cheiro
do seu cigarro mentolado
em alguém próximo a mim
– logo bate a saudade
a vontade de me agarrar
ao seu peito
ir lentamente me afundando
em seus abraços
e beijar sua boca

eu preciso que você volte
para que eu possa saber
o que fazer de mim

amor tardio

eu declaro meu amor
à minha gata
que se aconchega entre minhas pernas
à noite

eu confesso minha saudade
ao retrato
da bisavó morta
que me ensinou
a viver com suavidade

eu sofro por desejar
aquele que se deitou comigo
mas depois foi embora
sem ter me dado o tempo
de dizer
ou perceber
que era amor

triste destino
o de quem só sabe
dizer eu te amo
para quem não pode
responder