Mineirinho, Presente!

ela me havia dito
que no primeiro e segundo tiros
sentia segurança
no terceiro
era invadida por
um estado de alerta
o quarto tiro
trazia o desassossego
nos quinto e sexto tiros
ela já sentia vergonha
do que acontecia
de quem fazia acontecer
vergonha de existir

mas ainda não acabara

o sétimo
e o oitavo
tiros
faziam seu coração
bater acelerado
de horror
no nono e décimo
sua boca tremia

no décimo primeiro
ela não aguenta
e clama pelo nome de
Deus

no décimo segundo
ela chama por seu irmão
no décimo terceiro
ela morre
porque ela é o outro

mas numa tarde ensolarada
na cidade maravilhosa
foram dados 80 tiros
para matar uma família
que cometeu o crime
de viver numa sociedade
intolerante

em 80 tiros
há mais de 6 mineirinhos
e a morte de todos nós

[o silêncio]

o silêncio roça
pela pele
subindo pelos braços
e me beijando no
pescoço

quando encosta seus lábios
à minha orelha
e diz o que apenas
o silêncio
pode dizer

de confusão
então
sinto um arrepio
o coração acelera

fica a angústia
da dúvida
se vem hoje
amanhã
ou jamais

porque o silêncio
não aprendeu a se comunicar
mas ele é a companhia
de quem espera respostas

[o abaporu]

o abaporu
como o taj mahal
foi feito por amor

tarsila pintou a si mesma
nua
e nela pintou
todo o povo brasileiro
para entregar
a oswald

o amor de uma pessoa
por outra
é um presente para o mundo

por isso
poetas ainda fazem
poesias de amor

[o mundo desabou numa quarta-feira]

o mundo desabou
numa quarta-feira

mas amanhã é quinta
e eu preciso levantar cedo
para trabalhar

como o tempo ousa
não me dar uma pausa
para sofrer?
como a noite não se prolonga
para caber todas as minhas lágrimas
antes do sol nascer?

o mundo continua a rodar
– não o meu, que está em pedaços,
e as pessoas seguem seus caminhos

então também vou em frente
me escorando por onde ando
tentando não pensar
no que me aconteceu

[nasci sem saber que estava vivo]

nasci sem saber
que estava vivo

minha vida intrauterina
pulsava no meu ser
e toda a saciedade e proteção
ainda me eram reais
mesmo que tudo fosse
uma memória esquecida

não chorava quando criança
e isso era paz para os meus pais

mas minha falta de choro
não era a ausência da dor
pois já latejava em mim a saudade
de não existir
e de não precisar
do que só me seria dado
se eu conseguisse alcançar
a linguagem

nasci com a ilusão
de não ter nascido
e me calei de saudade desse tempo

[àquele que nada falta]

àquele que nada falta
não é dado desejar
e a vida pulsa no desejo

é a falta que move
os sonhos em direção
ao querer e realizar

a feiticeira da imaginação
pinta as fantasias
de castelos e aventuras
em belíssimas paisagens
ou quartos escuros
para nos salvar do nada
que a vida é

uma vida sem invenções
é uma lótus abortada
é uma existência medíocre
é o nada que se finge contente
em ser nada

[patologias do tempo]

patologias do tempo
provocadas pela aceleração
da máquina

a poesia ficou
no impacto daquele
esbarrão no metrô
ou dentro do elevador
que se fechou na minha cara

espremido no presente
dessa mínima partícula
condensada
entre passado e futuro
sobre a qual
tenho a ilusão
de ter poder

roendo o sonho
moendo a esperança

aqui
onde estranho a mim
e a esses prédios
mas reconheço
as nuvens no céu

que força
é preciso ter
para carregar o
passado e futuro
na duração do
instante?

dialética do corpo

é necessário
domá-lo e dominá-lo
o corpo deve ser colonizado
para produzir ao ser
produzido

deve ser pleno de pelos
e cabelos
– apenas no lugar certo
no gênero certo

ele precisa se encaixar
no pequeno espaço
em que somos feitos para habitar
– espaço esse que compreende
a minha existência
podada pelo que o outro
espera de mim
e espera de si mesmo

meu corpo, dissidente
e rebelde,
não apenas não quer
como também se declara
incapaz
de mergulhar na
normalidade

para alcançar o supremo
eu preciso abandonar
meu corpo?

o que é um corpo?
o que pode o corpo?

qual tecnologia constrói
o corpo?

qual corpo é pobre?
qual corpo é rico?

quem cria as regras
para se viver
dentro do meu corpo?

são tantas perguntas
e mais tantos corpos
morrendo
por serem apenas corpos
e por serem tão mais do que
corpos

amor a Nápoles

eu sei os motivos
que fariam alguém
se apaixonar por Londres
Paris, Roma ou Barcelona

são lugares fascinantes
com histórias e belos
cenários

mas Nápoles
é ainda mais bela
– de uma beleza crua
sem lapidação

o olhar desatento
de quem busca
uma beleza simples
só irá encontrá-la
no avesso
de si mesmo

perde-se tanto
por não amar
Nápoles
à primeira vista

mas onde em Nápoles
está o fim
se encontra também
o início

e todo início
é uma nova oportunidade
de se entregar
ao amor